6.
É
tarde da noite e o telefone toca; adormecer não era parte dos planos e sim mais
uma consequência do cansaço. Viver exige estar preparado. O corpo acordaria sem
reconhecer o ambiente ao redor. Tanto faz.
A paralisia dos sentidos já fora iniciada. Do outro lado da linha, alguém que
talvez se importasse. Alguém que estivesse indo dormir querendo dizer apenas tenha uma boa noite. Ou talvez somente
conversar um pouco. Apenas tentar compreender o que faz com que a vida exija
tanta manutenção. E parece que não sobra lugar algum para uma alegria real.
Fugir de agendas inventadas. Clandestinamente chegar até aquele bar numa
esquina. Pedir o quê? Tanto faz. Mas
é que a tarde estava o que se pode chamar de especial. Mas é que do lado de
fora da porta de vidro havia um casal que explicitava um estado nascente de
paixão. Enquanto outros dois vivenciavam o fim. Há tanto tempo juntos; nem mais
se conheciam. Era preciso que fossem mais uma vez apresentados um ao outro.
Para novamente se surpreender. O constrangimento a dois é vergonhoso:
redundâncias do amor que se esvai. Flagrar com desgosto a alegria do casal. O
pior uso da intimidade, esse de evitar os movimentos difíceis. Se a emoção
viesse. Ah, tanto faz! Virar o rosto
para dizer que não acreditam mais. E tacitamente se considerarem um fracasso
público. A carteira com dinheiro não é mais garantia de segurança íntima. A
comida está boa? Era isso mesmo que vocês queriam? Por que de uma hora para
outra o mundo estava em desconserto? Onde aquela cor havia se esmaecido? E o
modo de o corpo reagir sem resposta. O funcionamento lógico do mundo. Do dia
para a noite. Ah, tanto faz. Segurar
o copo. Levá-lo à boca. Encostar o cristal nos lábios. Ingerir o líquido.
Abraçar com vontade o corpo do outro. Procurar o mistério vivo dentro dos
olhos. Beijar e deixar-se beijar. Tanto
faz. Nenhum está mais ali. Dormir. Acordar. Viver. O tabuleiro largado no
meio da partida. Aonde estariam indo enquanto mantinham-se parados?
7.
Talvez
não se devesse falar de amor. Talvez fosse melhor simplesmente lembrar a noite
em que, antes de partir, viu aqueles olhos pela última vez. Talvez, deixar de
lado as palavras difíceis. Estas os encerrariam em infinitos corredores. As
palavras descontadas. E o silêncio do olhar. Acordes de uma canção. Nenhum
motivo para velar o corpo insone das horas. A música chegando ao mar,
orquestrando a repetição das ondas. Oração sonora. Riso solto misturado aos
dias abertos de sol. Traço de lua em um rosto noturno e denso. Talvez não
devessem se acostumar a mentiras. Talvez tenham chorado demais. Talvez se
devesse, sim, falar de amor. Dançar molemente no ritmo. Dentro do ritmo.
Entregues ao ritmo. Oferecer aos olhos outras paisagens. Outros cenários com
que o amor escapasse às ciladas do tédio. Do que é feito um corpo, soube. Do
que é feito um corpo, quis. Do que lhes foi dado sentir, desperdiçaram os mais
puros dons. Sem escolher as difíceis palavras. E o dia tardava sempre a
amanhecer.
Assionara
Souza, Os hábitos e os monges,
p.29-31
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