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16 de dez. de 2013

sobre as escolhas feitas e tudo o que resta por fazer

Escolher sua herança

É verdade, sempre me reconheci, quer se tratasse da vida ou do trabalho do pensamento, na figura do herdeiro – e cada vez meias, de maneira cada vez mais assumida, às vezes feliz. Ao me explicar de maneira insistente com esse conceito ou com essa figura do legatário, cheguei a pensar que, longe do conforto seguro que se associa um pouco rápido demais a essa  palavra, o herdeiro devia sempre responder a uma espécie de dupla injunção, a uma designação [assignation] contraditória: é preciso primeiro saber e saber reafirmar o que vem “antes de nós”, e que portanto recebemos antes mesmo de escolhê-lo, e nos comportar sob esse aspecto como sujeito livre. Ora, é preciso (e este é preciso está inscrito totalmente na herança recebida), é preciso fazer de tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanecer inapropriável, quer se trate aliás de memória filosófica, da precedência de uma língua, de uma cultura ou da filiação  em geral. Reafirmar, o que significa isso? Não apenas aceitar essa herança, mas relançá-la de outra maneira e mantê-la viva. Não escolhê-la (pois o que caracteriza a herança é primeiramente que não é escolhida, sendo ela que nos elege violentamente), mas escolher preservá-la viva. A vida, no fundo, o ser-em-vida, isto talvez se defina por essa tensão interna da herança, por essa reinterpretação do dado do dom, até mesmo da filiação. Essa reafirmação, que ao mesmo tempo continua e interrompe, no mínimo se assemelha a uma eleição, a uma seleção, a uma decisão. A sua como a do outro: assinatura contra assinatura. Mas não me servirei de nenhuma dessas palavras sem cercá-las de aspas e de precauções. A começar pela palavra “vida”. Seria preciso pensar a vida a partir da herança, e não o contrário. Seria preciso portanto partir dessa contradição formal e aparente entre a passividade da recepção e a decisão de dizer “sim”, depois selecionar, filtrar, interpretar, portanto transformar, não deixar intacto, incólume, não deixar salvo aquilo mesmo que se diz respeitar antes de tudo. E depois de tudo. Não deixar a salvo: salvar, talvez, ainda, por algum tempo, mas sem ilusão quanto a uma salvação final. [...]
            Meu desejo se parece com aquele de um apaixonado pela tradição que gostaria de se livrar do conservadorismo. Imagine um apaixonado pelo passado, apaixonado por um passado absoluto, um passado que não seria mais um presente passado, um presente na medida, na desmedida de uma memória sem fundo – mas um apaixonado que receia o passadismo, a nostalgia, o culto da lembrança. Dupla injunção contraditória e desconfortável, portanto, para esse herdeiro que acima de tudo não é o que se chama “herdeiro”. Mas nada é possível, nada tem interesse, nada me parece desejável sem ela. Ela ordena dois gestos ao mesmo tempo: deixar a vida viva, fazer reviver, saudar a vida, “deixar viver”, no sentido mais poético daquilo que, infelizmente, foi transformado em slogan. Saber “deixar”, e o que significa “deixar” é uma das coisas mais belas, mais arriscadas, mais necessárias que conheço. Muito próxima do dom e do perdão. A experiência de uma “desconstrução” nunca acontece sem isso, sem amor, se preferir essa palavra. 

Jacques Derrida, em entrevista a Elisabeth Roudinesco no livro De que amanhã... diálogo

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