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3 de ago. de 2015

ave rara pulsante

           Seguimos ao longo da praia, sem destino. Em grandes haustos, respiramos setembro. Os instantes são dias. Cresce, neste passeio em que tardes e noites se concentram, meu amos por Cecília, a precisão de incorporá-la à minha vida (ou de incorporar, à sua vida, a minha), crescem a nossa intimidade e o mútuo conhecimento. Hermenilda ou Hermelinda não mente quando diz que sou homem das letras e dos livros. Planejo escrever. Para quê? A certa altura do seu governo, tão prolongado, Vargas preocupa-se com as saúvas. Podia ter inventado, como programa, multiplicar os pássaros e os tamanduás. Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar a minha vida. Uma decisão artificial, Cecília. Honesta, contudo. Invento, ao mesmo tempo que as formigas, pássaros imaginários e tamanduás com língua de fogo. Jogar umas palavras contra outras, exercer sobre elas uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem, dentre as palavras, demônios inesperados. Numa sociedade como a nossa, da qual, mais ou menos como os seus clientes do Hospital Pedro II, desconfio e que não me atrai, é, com atritar as consciências – até que estas, igualmente, façam-se em chamas e incendeiem o arcabouço velho -, o que resta fazer. Ambas, vê-se bem, atividades mais ou menos gratuitas, e, em certo sentido, fora da lei. Estou longe de ter as virtudes exigidas para incendiar as consciências, como faz, na zona canavieira, Francisco Julião. Falta-me a energia cega dos reformadores; e com a minha tendência, talvez arcaica, para raciocinar com todos os dados dos problemas, custaria muito a decidir-me sobre os valores que devem ser incinerados ou substituídos. Nem, ao menos, sei dizer com segurança se a profissão que você exerce, fraterna e retificadora, é mesmo adequada à realidade que vivemos. Ela pode dar um sentido à sua vida. Mas, verdadeiramente, tem sentido hoje? Não sou capaz de responder, Cecília. Resta-me, então, por este modo recusando todas as estúpidas formas oficiais de viver, isto que suponho ficar em minha alçada – intentar maquinações com as palavras. Projeto desesperado e enleante.


Osman Lins, Avalovara, p.182-183.

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