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2 de nov. de 2012

andar no mundo

Hábitos e atenção
     A primeira de todas as qualidades é a atenção - afirma Goethe. No entanto, ela divide a primazia com o hábito que luta com ela desde o primeiro momento. Toda atenção deve desembocar no hábito se não pretende desmantelar o homem; todo hábito deve ser estorvado pela atenção se não pretende paralisar o homem. Atenção e hábito, assim como repulsa e aceitação, constituem cristas e depressões de ondas no mar da alma. Mas este mar tem suas calmarias. Sem dúvida, uma pessoa que se concentre totalmente num pensamento aflitivo, numa dor e seus abalos, pode se tornar presa do ruído mais tênue, de um murmúrio, do voo de um inseto, os quais um ouvido mais atento e mais aguçado não teria talvez percebido de modo algum. A alma - assim se pensa - se deixa desviar tanto mais facilmente quanto mais concentrada está. Porém, não será esse escutar atento menos o fim do que o desenvolvimento extremo da atenção - o instante em que ela deixa emergir de seu próprio âmago o hábito? Este zunido ou sussurro é o umbral, e despercebidamente a alma o ultrapassou. É como se não mais quisesse retornar ao mundo habitado; vive agora num mundo novo onde a dor é o seu oficial de acantonamento. Atenção e dor são complementos. Mas também o hábito tem um complemento, e atravessamos o seu limiar no sono. Pois o que se realiza em nós durante o sonho é um perceber novo e inaudito que, no regaço do hábito, luta para se safar. Acontecimentos do dia a dia, conversas triviais, o resíduo que ficou em nosso olhar, o pulsar do próprio sangue - isso, antes despercebido, forma, de modo irreconhecível e supernítido, a matéria dos sonhos. Nos sonhos - nenhum assombro; na dor - nenhum esquecimento, pois ambos já trazem em si o seu oposto, como as cristas e as depressões das ondas que, na calmaria, estão acomodadas umas sobre as outras.


Montanha abaixo
      A palavra abalo tem sido ouvida abusivamente. Com relação a isso, alguma coisa bem poderia ser dita em sua honra. Em momento algum ela vai se afastar do mundo físico e, acima de tudo, vai se ater a um ponto, ou seja: o abalo conduz ao desmoronamento. Querem, pois, dizer - aqueles que nos asseguram de seu abalo a cada premiére ou a cada novidade - que algo neles desmoronou? Ah, a frase que estava estabelecida antes, continua estabelecida depois. Como poderiam também conceder a si próprios a pausa à qual só o desmoronamento pode suceder? Ninguém nunca a sentiu com maior nitidez que Marcel Proust na morte da avó que lhe pareceu consternadora, mas de modo algum real - até que, à noite, ao tirar os sapatos, lhe vêm lágrimas. Por quê? Porque ele se curvou. Assim, o corpo é o que desperta justamente a dor profunda e pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambos precisam de solidão. Quem alguma vez escalou sozinho uma montanha e chegou esgotado ao topo para em seguida descer com passos que abalam todo o seu esqueleto sabe que, para ele, o tempo se desagrega, as paredes divisórias em seu interior desabam e, através dos cascalhos dos instantes, ele caminha trotando como num sonho. Por vezes tenta parar, mas não consegue. Quem sabe se são pensamentos que o abalam ou o áspero caminho? Seu corpo se tornou um caleidoscópio que, a cada passo, lhe apresenta figuras cambiantes da verdade.

Walter Benjamin,  trechos da "Sequência de Ibiza",  Rua de mão única

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