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13 de jul. de 2016

a mínima inclinação (ou sobre o que dura não)

Não comece. Depois de começar, você se dará conta de que não existe mais caminho de volta. Mesmo que você retorne e tente apagar as pegadas dos passos já dados, eles nunca serão desfeitos. Mesmo que nenhum traço sobre daquelas pisadas, elas foram dadas e, se não há restos aparentes no chão, em você, ao menos, elas nunca mais se apagarão. Por isso, é melhor preservar-se ileso, na visão preliminar do começo e, quem sabe, fingir que se vai começar, para que os tolos pensem que isso de fato vai acontecer. Você se posta na iminência do começo, ensaia uns gestos que aparentam prontidão para ele e pronto. Todos irão embora acreditando que dali certamente sairá um começo, e você fica ali, não começado. Se eles voltarem e perguntarem por que você ainda não deu o primeiro passo, você continua ameaçando dá-lo e todos entenderão que isso não aconteceu por razões sérias e incomunicáveis. Se esse teatro for de difícil execução, retire-se. Escondendo-se, haverá álibis para o fato de você não ter começado e todos entenderão sua recusa. Será como se você não só já tivesse começado, mas como se estivesse no meio. Pense que não começar é a única forma de não disparar um processo incontornável de sofrimento. Mesmo que você só dê um único passo, será como colocar a peça errada no tabuleiro de xadrez. Assim são os começos. Não pense que ao encostar o pé no chão poderá arrepender-se. Basta um gesto; basta inclinar o corpo um pouco para frente, deslocar o peso das pernas e levantar os dedos. Não os levante. Mas não pense, por outro lado, que será fácil a decisão de não começar. Não pense que poderá simplesmente esquecer-se disso. Não. Os não começadores precisam estar em constante estado de atenção, porque a qualquer momento você pode começar sem nem se dar conta e todo o trabalho de não ter começado terá sido desperdício. Não sobrará pedra sobre pedra e você não será diferente daqueles que nem se importam em começar e vão despreocupadamente começando qualquer coisa que aparece. Não pense que todo o trabalho de preparação mudará alguma coisa. Você será como eles. Por isso, não descanse. Não começar é mais desafiador que o contrário. A vantagem é que o sofrimento é menor, embora o desgaste tático seja maior. Se o não começador não se mantiver em estado de prontidão para o não começo, desavisadamente ele corre o risco de, num passo em falso, começar alguma coisa. E não só qualquer coisa, como justo aquela que ele mais temia; porque essa é a que fica à espera de um descuido para, num golpe baixo, disfarçar-se de outra coisa e, quando o não começador vê, é ela que se anuncia e o retorno é impossível. Os começos são mais poderosos do que parecem e do que qualquer força de resistência, já que seus meios são capciosos. Por isso, para evitar o começo, não bastam fortificações. É preciso armadilhas mínimas, quase invisíveis, para que eles não se entreteçam pelas beiradas.



Noemi Jaffe, no Livro dos começos

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