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5 de jul. de 2016

dar um passo a frente

Então, uma noite – era uma noite como muitas outras; havia umas doze ou catorze pessoas jantando [...], o sacerdote ex-ladrão de livros chegou e colocou um pequeno livro preto e branco na minha mão, dizendo: “Acho que isso pode interessa-la”. Eu o peguei, folheei a esmo, ainda determinada a servir nosso ensopado de carne, e me vi no meio do Uivo, de Allen Ginsberg. Soltei a concha, voltei ao começo e, de imediato, minha atenção foi capturada por aquela abertura triste e poderosa: “Vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura...” [...]
            O poema colocava certo peso em mim também. Concluí que, se havia um Allen, devia haver muito mais, outras pessoas, além de meus poucos amigos, escrevendo o que diziam, o que ouviam, vivendo, ainda que de maneira furtiva ou envergonhada, o que conheciam, escondendo-se aqui e ali como fazíamos – e agora, de repente, prestes a se manifestar abertamente. Porque eu senti que Allen era apenas, só podia ser, a vanguarda de algo muito maior. Todas as pessoas que, como eu, escondiam-se e esquivavam-se, escrevendo o que sabiam para um grupo pequeno de amigos – e até mesmo os amigos que afirmavam que aquilo “não poderia ser publicado”- esperando apenas com uma leve amargura a coisa acabar, que a era do homem chegasse ao fim em uma labareda de radiação – todos esses iam agora dar um passo a frente e se pronunciar. Não muitos os ouviram, mas eles, finalmente, ouviriam uns aos outros. Eu estava prestes a conhecer meus irmãos e irmãs.
            Havíamos chegado à maioridade. Eu estava assustada e um pouco triste. Eu sempre me apegara de forma instintiva à vida não convencional, fácil e espontânea que levávamos no lugar, nossa percepção tácita de que estávamos sós em um mundo estranho, uma percepção que nos mantinha orgulhosos e unidos. Mas, naquele momento, o arrependimento pelo que poderíamos estar perdendo estava enterrado sob uma sensação abrangente de regozijo, de alegria. Alguém estava falando por nós, e o poema era bom. Eu estava animada e encantada. Voltei para casa e para o jantar, e nós lemos Uivo juntos; eu li em voz alta para todo mundo. Uma nova era havia começado.
            Enquanto isso, as mudanças começavam a ocorrer à nossa volta, mais intensas e pesadas que nunca – de modo que nem nós podíamos deixar de notá-las. A primeira coisa que percebi e que me abalou muito foi que o lugar estava se esvaindo, estava gasto demais. Não aconteceu nada em particular, ele apenas começou a ficar com aquele ar, aquela sensação, quando você abre a porta e entra, de que o lugar não é habitado há algum tempo, de que o ar está parado. Os lugares fazem isso, já notei. Eles viram as costas sem avisar, se fecham, e, de repente, é como se você morasse em um necrotério ou em uma geladeira. O impulso vital que criava um lar, uma espécie de centro vivo, muda de direção como uma corrente oceânica, e aquela ilha específica não está mais no trajeto. Dá pra perceber, porque mesmo no auge do verão há um frio no ar, alguma coisa que penetra os ossos.


Diane di Prima, Memórias de uma beatnik, p. 195-197.

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