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24 de out. de 2009

poética


Analogia
            Talvez convenha voltar uma vez mais à interrogação que aponta em cheio para o mistério poético. Por que toda poesia é fundamentalmente imagem, por que a imagem se destaca no poema como o instrumento encantatório por excelência? Gaetan Picon alude a uma “relação privilegiada do homem com o mundo”, que a experiência poética nos levaria a suspeitar e nos revelaria. Não pouco privilegiada, na verdade, uma relação que permite sentir próximos e conexos elementos que a ciência considera isolados e heterogêneos; sentir, por exemplo, que beleza = encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura (Lautréamont). Mas, observando melhor, na realidade é a ciência que estabelece relações “privilegiadas” e, em última análise, alheias ao homem que tem de incorporá-las pouco a pouco e por aprendizagem. [...]
Os fatos são simples: de certo modo, a linguagem íntegra é metafórica, referendando a tendência humana para a concepção analógica do mundo e o ingresso (poético ou não) das analogias nas formas da linguagem. Essa urgência de apreensão por analogia, de vinculação pré-científica, nascendo no homem desde as primeiras operações sensíveis e intelectuais, é o que leva a suspeitar uma força, uma direção do seu ser para a concepção simpática, muito mais importante e transcendente do que todo racionalismo quer admitir. Essa direção analógica do homem, superada pouco a pouco pelo predomínio da versão racional do mundo, que no Ocidente determina a história e o destino das culturas, persiste em diversos estratos e com diversos graus de intensidade em todo indivíduo. Constitui o elemento emotivo e de descarga da linguagem nos diversos falares, desde o rural e o suburbano, até a língua culta, as formas-clichê da comunicação oral cotidiana, e, em último termo, a elaboração literária de grande estilo – a imagem luxuosa e inédita, roçando a  esfera poética ou já em cheio nela. Sua permanência e frescor invariáveis, sua renovação que todos os dias em milhões de formas novas agita o vocabulário humano no fundo do cadinho chamado terra, acentua a convicção de que, se o homem se ordena, se comporta racionalmente, aceitando o juízo lógico como eixo da sua estrutura social, ao mesmo tempo e com a mesma força (embora essa força não tenha eficácia), se entrega à simpatia, à comunicação analógica com o ambiente. O mesmo homem que julga, racionalmente, que a vida é dolorosa, sente o obscuro prazer de enunciar esse fato com uma imagem: a vida é uma cebola, que é preciso descascar chorando.
            Então, se a poesia compartilha e leva ao extremo esta premência analógica comum, fazendo da imagem o seu eixo estrutural, a “lógica afetiva” que, ao mesmo tempo, a arquiteta e habita; e se a direção analógica é uma força contínua e inalienável em todo homem, não será hora de descer da consideração somente poética da imagem à busca da sua raiz, esse algo que subjaz e assoma à vida junto com a cor de nossos olhos e nosso grupo sanguíneo? [...]

Interlúdio mágico
[...]
            A evolução racionalizante do homem foi eliminando progressivamente a cosmovisão mágica, substituindo-a pelas articulações que ilustram toda a história da filosofia e da ciência. Em planos iguais (pois ambas as formas de conhecimento, de desejo de conhecimento, são interessadas, visam ao domínio da realidade) o método mágico foi gradualmente desalojado pelo método filosófico-científico. O antagonismo evidente entre ambos ainda hoje se traduz em restos de batalha, como a que travam o médico e o curandeiro, mas é evidente que o homem renunciou quase que totalmente a uma concepção mágica do mundo para fins de domínio. Permanecem as formas aberrantes, as recorrências próprias do inconsciente coletivo que encontra saídas isoladas na magia negra ou branca, nas simbioses com superstições religiosas, nos cultos esotéricos nas grandes cidades. Mas a escolha entre a bola de cristal e o doutorado em letras, entre o passe magnético e a injeção de estreptomicina, está definitivamente feita.  
 [...]

Cortázar
"Para uma poética" em Valise de cronópio

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