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6 de out. de 2009

recorrência

       Nunca terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casada. Resvalo de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros. Só que no fim de cada um deles, em vez de Joana morrer e principiar a vida noutro plano, inorgânico ou orgânico inferior, recomeçava-a mesmo no plano humano. Apenas diversas as notas fundamentais. Ou apenas diversas as suplementares, e as básicas eternamente iguais?
       Era sempre inútil ter sido feliz ou infeliz. E mesmo ter amado. Nenhuma felicidade ou infelicidade tinha sido tão forte que tivesse transformado os elementos de sua matéria, dando-lhe um caminho único, como deve ser o verdadeiro caminho. Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro pra existir. Traziam um conhecimento que não servia como experiência - um conhecimento direto, mais como sensação do que como percepção. A verdade então descoberta era tão verdade que não podia subsistir senão no seu recipiente, no próprio fato que a provocara. Tão verdadeira, tão fatal, que vive apenas em função de sua matriz. Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota. Não posso moldá-la, fazê-la inspirar outros instantes iguais. Nada pois me compromete.
       No entanto a justificação de sua curta glória talvez não tivesse outro valor senão o de lhe dar certo prazer de raciocínio, assim como: se uma pedra cai, essa pedra existe, essa pedra caiu de um lugar, essa pedra... Ela errava tanto.



Clarice Lispector
em Perto do coração selvagem

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